Principalmente a partir da década de 70 em diante, alguns filmes com protagonistas negros começaram a aparecer no cenário de terror independente. No entanto, a maioria desses exemplares passeavam por caminhos caricatos, parodiais ou inofensivos do ponto de vista racial – pode-se lembrar de longas-metragens como Um Vampiro no Brooklyn, com Eddie Murphy, filmes feitos para a televisão, com Snopp Dogg, ou terrores icônicos, como Candyman. O elemento racial pouco era fator nesses filmes, se levarmos em conta o que poderia ser aproveitado. O próprio Pânico 2, de Wes Craven, iniciava seu filme no cinema falando de como os negros eram subaproveitados no cinema de terror, sendo sempre os primeiros a morrer ou tendo um papel mínimo dentro da estrutura (algo repetido no próprio filme), já que o gênero sempre foi predominado por homens brancos em sua maioria. A conhecida misoginia do terror, por exemplo, persistiu tempo demais até que diretoras (e diretores como Carpenter, Scott, Craven e outros) começassem a mostrar outros caminhos interessantes para o desenvolvimento da mulher no cinema de gênero. O terror racial, no entanto, jamais havia sido explorado como esse clássico instantâneo chamado Get Out – Corra!, na tradução brasileira.
Iniciando com uma cena espetacular de um homem negro num bairro de classe média assustado com a presença de um carro luxuoso, Jordan Peele é inteligentíssimo na construção de sua atmosfera ao deixar com que cada aspecto aterrorizante seja sintomático e jamais gratuito. Perceba, assim, que o primeiro jump scare do filme só é eficiente por não ser esperado, já que Peele é proposital e específico. Não só isso, a trilha sonora de Michael Abels é tão imprescindível para esses momentos de salto que um dos maiores choques provém justamente de um aumento de trilha inesperado, quando uma determinada personagem passa atrás de Chris.
E é recompensador analisar como esses sustos de modo algum são jogados na narrativa sem motivos. Tudo serve como combustível para analisar a tensão racial que existe naquela casa. Assim, o exato instante que a trilha aumenta não somente pode lembrar o som ensurdecedor de uma lâmina, como também pode indicar o próprio pensamento do protagonista naqueles momentos de pavor. E note que, quando ele começa a não ficar mais surpreso com nada na casa, os jump scares também cessam. Porque é a visão dele que importa.
Desta forma, trabalhando brilhantemente a condescendência hipócrita que ronda aquela casa, o terror inicia de maneira gradual e natural, como se estivéssemos nos olhos de Chris, que é o único a notar que o comportamento dos negros naquela casa não é normal. Sua cisma é lenta, mas entendida em cada nuance. O que poderia ser banal para outra pessoa, alguém que tenha experiência com comportamento social intimidador, alguém como Chris, sabe que algo ali não é normal.
Se a manipulação da família é sempre muito bem resolvida, com o personagem do ótimo Bradley Whitford repetindo insinuações da personagem da eficiente Allison Williams, Peele brinca com eficiência com o seu subgênero atípico – portanto, criando inserções interessantes de diferentes décadas e condensando uma espécie de metodologia para sua narrativa. E se há alguma semelhança com outro trabalho brilhante lançado em 2017, A Cura, com seu território psicológico e “cientistas loucos”, a vulnerabilidade e a impotência evidenciam um terceiro ato poderoso, com a vingança do protagonista sendo cultivada quase como um horror de estupro-vingança.
E quando o espectador fica receoso de quem abrirá a porta da viatura policial no terceiro ato – um branco ou um negro – ficamos diante da manifestação aterrorizada não só de Peele, mas do negro na América.