A generalização mais mesquinha do mundo pós-contemporâneo, provavelmente, é aquela que coloca fé e razão em frentes opostas, como se inconciliáveis. Como nada é por acaso, carrega consigo um pesado discurso, que, basicamente, pode se resumir a: se você tem fé é porque abriu mão da racionalidade.
É um raciocínio relapso sob todos os aspectos. Não se sustenta histórica nem filosoficamente. Acaba por ser, portanto, uma muleta fajuta para que pessoas de autoestima fraquejante possam louvar-se a si mesmas por estarem na pretensa parcela superior, iluminados pelo farol sapiente da descrença.
Há racionalidade na fé e na transcendência, ela apenas ultrapassa a fronteira limítrofe que alguns se impuseram.
“A fé cristã vai além da razão, nunca contra ela”.
Ruminei tais pensamentos ao fazer a leitura do livro “Anjos e demônios”, de Dan Brown. Nunca havia lido nem assistido filme algum baseado em suas obras. O sucesso da década passada, que o colocou dentre os escritores que mais faturaram na história, o precedeu, e, por óbvio, já sabia basicamente do que sua obra se tratava.
Porém, como tenho preconceito contra livros que todo mundo está lendo, esperei dez anos para que chegasse sua vez em minha fila de leitura, para tirar minhas próprias conclusões.
Ainda não li “O código da Vinci”, mas em breve o farei, ampliando assim minha visão sobre o autor e, principalmente, sobre a tessitura de seu trabalho.
Esteticamente, não possui nenhum talento a ser superlativado. A escrita é fluida e o interesse pela narrativa se mantém. Usa o método “Sidney Sheldoniano” de criar mini-clímax ao final de cada capítulo, aguçando ao leitor a seguir para o próximo.
Tal qualidade é essencial para um escritor de best-sellers. O leitor tem que ficar no cio, desesperado pelo capítulo seguinte e pela recorrência do que acabou de ler. Dan Brown o faz muito bem. A história também, enquanto thriller, é coesa, bem amarrada e possui um final surpreendente.
Enquanto ficção, boa leitura.
O problema é que Dan Brown transcendeu este papel. Numa Era tão idiotizada, qualquer um se torna portador de verdades universais, e isto ocorreu com este ficcionista. Em terra de cego quem tem um olho é rei, porém, em terra de rei, quem tem dois olhos enxerga…
Dan Brown não tem traquejo para desvelador de segredos. Sua defesa ideológica exige escoras que a História, por exemplo, não lhe fornece.
O autor sustenta sua obra sob o pilar supracitado: a divergência entre ciência e religião. Age como se a religião organizada tramasse contra o progresso, não discernindo a verdade cabal de que a sociedade ocidental está fundamentada sobre a viga-mestra do cristianismo. Dan Brown transparece que a ciência evolui apesar da herança judaico-cristã ocidental, o que, sob qualquer prisma que se analise, é um acinte.
Transcrevo um dos trechos mais importantes, onde o livro chega perto de fornecer uma relevante reflexão.
Notem o discurso de um personagem religioso:
A velha guerra entre a ciência e a religião está encerrada. Você venceram (…) A religião não tem capacidade para acompanhar isto. O crescimento científico é exponencial. Alimenta-se de si mesmo como um vírus. Cada novo avanço abre espaço para novos avanços. A humanidade levou milhares de anos para evoluir da roda para o carro. E apenas décadas do carro para o espaço (…) O abismo entre nós se aprofunda sem parar e, à medida que a religião vai ficando para trás, às pessoas se veem num vazio espiritual, implorando pelo sentido das coisas.
(…)
A ciência, dizem vocês, vai nos salvar. A ciência, digo eu, nos destruiu. Desde o tempo de Galileu e Igreja vem tentando diminuir o ritmo da marcha implacável da ciência, às vezes por meios equivocados, mas sempre com intenções benéficas.
(…)
À ciência, quero dizer o seguinte: a Igreja está cansada. Estamos exaustos de tanto tentar ser uma diretriz para o mundo. Nossos recursos estão esgotados por sermos a voz do equilíbrio enquanto vocês se atiram de cabeça em sua busca por chips menores e lucros maiores.
Pincei alguns excertos, mas o discurso – o ponto alto do livro, se estende por três páginas.
Ao opor fé e ciência, Dan Brown desfoca o que poderia ser uma apropriada reflexão sobre os flexíveis e abstratos valores contemporâneos, sobre a efemeridade alimentada por um sistema de consumo estruturado através de obsolescência programada.
Prefere inimizar fé e razão, religião e ciência, como dois antagonistas medievos, ainda por cima mencionando o velho trunfo de sempre: Galileu Galilei.
O homem que na verdade prova que a Igreja apoiava a ciência se tornou a evidência mais usada hoje dia para explicar o contrário…
Galileu Galilei, na verdade, foi denunciado à Inquisição por outros cientistas que o consideravam um charlatão…
Foi, inclusive, pedir auxílio e foi defendido por jesuítas…
Mas essa história fica para outro artigo.
Fé e razão são perfeitamente conciliáveis. Sou cristão e sou racional. Tão racional que não consigo cegar-me ao fato de que a perfeição da vida em todas as suas minúcias não poderia brotar sem uma Inteligência Máxima geradora.
A diferença é que a racionalidade de quem tem fé em Deus, se alarga para a dimensão que Ele alcança, entrando no campo metafísico.
Sendo Ele infinito, a fronteira racional de quem O teme se amplifica.
Vai além da razão, nunca contra ela.
Dan Brown é literatura de entretenimento. Não há problema algum em ler, desde que você não seja o tipo que confunde fatos reais com fantasia.
É mera e boba ficção.
Fonte: https://artigos.gospelprime.com.br